Puxar o sol como chiclete
Sobre uma entrevista de emprego, e pontos fortes, e pontos fracos
O raio atravessava os fios castanhos aparados na nuca do candidato. Revelava, como corte ou tatuagem, a pele parda, debruçada sobre a mesa de vime do restaurante. As asas abertas preenchiam a superfície de vidro. Beijaria ele a própria imagem?
Debaixo dos braços do moletom o garoto escondia uma folha pautada que reproduzia - de uma margem a outra - o deck de madeira onde ele tremia o tênis branquíssimo, bem como a calçada de concreto regular, as linhas em relevo da estação, o trilho do metrô, a faixa de ônibus – um, dois – que o levaram à entrevista de emprego.
A folha pautada esperava a caneta Bic, azul, firme entre o polegar e o indicador:
- Fale sobre seus três pontos fortes – ele gritou.
A viva-voz do celular ditou, num bafo metalizado.
- Li-gei-ro – escreveu o candidato na primeira linha. – Res-pei-to-so – continuou, na segunda. Ágil? Como se escreve ágil?
- A-G-I-O – soletrou a viva-voz.
Na caixa de som, Pavarotti cantava: o sol está de frente para você. Os ramos densos da Ficus balançavam, lentos, com a claridade quente e o ar frio da imensa amplitude térmica de outono, e sombreavam os candidatos - homens e mulheres espalhados pelo salão externo, agasalhados e grudados aos seus papeis.
A encarregada jogou ao chão as folhas secas, caídas sobre a mesa desprotegida de ombrelone – é nesta, ao canto, que ela vai selecionar. Ela suspirou ao sentar, a mulher corpulenta de cabelos compridos presos no alto da cabeça. Alisou o rabo de cavalo e conferiu o horário no celular, ciente, mas indiferente ao descolar dos candidatos da folha de papel: um copo espatifou no salão principal; eles viram, pelas paredes de vidro, quando o homem de preto agachou.
A meio metro do homem de preto, dois vestidinhos de alça voltaram a erguer taças rosé. Tim-tim; balançavam os cabelos na cintura por mais um almoço às três da tarde. Estivessem à sombra, do lado de fora, vestiriam um casaquinho. Alguns passos adiante, outro homem de preto despejava sobre a rodela de limão a água do engravatado, que apoiava o cotovelo na mesa e ponderava, sério, com a mulher de lenço estampado ao pescoço, compenetrada no assunto mais importante do dia: as bolhas de gás atrás da superfície.
Quando Pavarotti atingiu a copa da Ficus e puxava o sol para o alto como chiclete grudado na mesa, o candidato gritou:
- Agora fale sobre seus três pontos fracos.
A viva-voz soprou com interferência. O rapaz apalpava o raio na nuca com a mão da Bic; perguntou por cima da orquestra:
- O que a senhora falou?
No dia anterior, ela havia mandado ele cortar o cabelo. “Não arrumam serviço pra ponta platinada, meu filho...”, ela disse. O rapaz atravessou, short-descalço, o chão de terra batida por cima do compensado até os fundos do terreno, onde o batidão vazaria pelos vãos da madeira esturricada mesmo se a porta e a janela da casa estivessem fechadas.
“Esquece, irmãozinho”, disse Carlinhos, o vizinho, ao pedido de empréstimo da máquina. “Senta aí que eu raspo”, emendou o inho que há tempos era ão. “Manda um raio aí”, pediu o garoto. “Esquece, irmãozinho, vai acabar tomando pipoco. Acha que confiam em raio?”.
Alguém do outro lado da vala chamou CX. Era encomenda negociada no zap: receber para jogar, falô? Quando o vizinho voltou para dentro com a grana, o garoto tinha marcado a zero, às cegas, o raio na própria nuca. “Bicho burro pra caralho”, gargalhou CX, o aprendiz de chefão.
- O que a senhora falou? – insistiu o rapaz por cima do Pavarotti em nova ascensão.
A viva-voz resmungou. O candidato concordou:
- É, acho que não...Não tem nada mesmo...Vou deixar em branco.
Pensativo sobre pontos fracos, ele virou o rosto para o salão principal, mas logo fechou os olhos com o reflexo de um relógio no vidro. A bolona de luz dançava, pendente, conforme o dono reclinava na cadeira estofada com os braços peludos estirados para cima. É o da camisa polo, que se espreguiçava na grande mesa redonda enquanto trinchava a carne vermelha entre os dentes.
– Era isso, tá bom, qualquer coisa ligo para a senhora, vó – desligou o rapaz.
A viva-voz descansou. Pavarotti, fechando solenemente a copa da Ficus, também.
O papel semipreenchido do candidato foi parar na pilha de fichas. O rapaz puxou a cadeira para sentar. Antes que ele acomodasse a bunda no assento, a recrutadora perguntou se ele sabe como funciona o trabalho. No salão principal, o engravatado, as vestidinhos de alça e o camisa polo aproximavam o cartão da maquininha: Pi-Pi-Pi, desembolsavam no almoço o salário do anúncio de emprego: jornada 6x1, 44 horas semanais.
Os ramos da Ficus balançavam para quebrar o silêncio; formavam mosaicos, móveis e lentos, em luz e sombra, sobre a cena final. A encarregada afastou num peteleco a folha verde perto do cabo, amarela-amarronzada na outra extremidade do limbo; caída em cima das notas sobre os candidatos. Ereto na cadeira, o garoto apalpava o raio na nuca. E como se da folha jogada ao chão e do apalpar do raio descarregasse uma corrente elétrica capaz de injetar a urgência de quem sobe uma escada íngreme na agilidade da luz, ocorreu ao rapaz algo que a viva-voz poderia ter soprado, que Pavarotti poderia ter puxado, que o vizinho poderia ter raspado, que ele poderia ter escrito, como ponto forte ou fraco, mas que, definitivamente, deveria deixar registrado:
- Meu sonho é trabalhar num restaurante desse – falou o candidato num fôlego, tremendo o tênis branquíssimo debaixo da mesa.